Incompatibilidade da SV. 05 do STF com o ordenamento jurídico-constitucional
- ZMBS Advogados

- 18 de set. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 19 de set. de 2020

O processo administrativo fiscal está sujeito à observância de uma série de regras e princípios – constitucionais e administrativos – necessários à preservação da sempre almejada segurança jurídica. O princípio do devido processo legal, também denominado “meta-princípio”, é a viga mestra da qual exsurgem todos os demais princípios, sobretudo se o adotarmos em sua acepção mais ampla (devido processo legal material), consagrado em decisões do Supremo Tribunal Federal (ADIn. 1.511-7∕DF. Ministro Carlos Velloso, Decisão publicada no DJ 31.10.1996; RE 170.463∕DF. Ministro Marco Aurélio, DJ 20.03.1998, p. 20; RE 157.902/SP. Ministro Marco Aurélio. DJ 25.09.1998, p.20).
Deste princípio decorrem várias consequências para os processos em geral, mas especialmente o administrativo, aqui debatido, a saber: (a) o dever de informar o administrado daquilo que se lhe imputa ou das consequências que podem advir do processo; (b) o respeito aos prazos e fases do procedimento; (c) o direito a ter vista dos autos; (d) o direito à defesa técnica, inclusive com apoio de advogado.
De tal sorte, é mais do que sabido que o devido processo legal deverá ser respeitado por completo em todas as suas fases de atuação, ou seja, há de prevalecer integralmente o procedimento sem qualquer tipo de violação ou nulidade, tal como garantido pelo art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal. Daí, sob o aspecto legal, a primeira conclusão que se extrai é que o devido processo legal é condição comum para o desenvolvimento válido e regular de todo processo, independente de sua natureza, mas sobretudo o administrativo, sob pena de rompimento da regra constitucional.
A importância do sobredito princípio e a clareza do Texto Constitucional ao prescreve-lo como condição sine qua non para a regularidade dos processos administrativos e judiciais (e também legislativos, por corolário lógico) acabam por aventar a dúvida a despeito da legalidade da Súmula Vinculante n.º 05, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. A confirmar essa assertiva, basta uma rápida pesquisa para constatar os inúmeros questionamentos judiciais que envolveram discussões sobre a legalidade da referida súmula.
Para uma correta avaliação da questão, não se pode olvidar que o processo administrativo disciplinar guarda pertinência temática, pois dele originado, com o Direito Penal, com todas as particularidades e especificidades desse ramo do direito, geralmente mais limitativas e restritivas diante dos bens jurídicos tutelados, como, por exemplo, a vida e a liberdade. Logo, temas como legalidade probatória, punibilidade, tipicidade, imputabilidade e culpabilidade são de fundamental relevância tanto para o processo penal, quanto para o processo administrativo sancionador.
Nesse contexto, nos parece induvidoso que o exercício de defesa no âmbito de processos administrativos sancionadores, mesmo envolvendo demandas singelas e com baixo potencial ofensivo, demandam um mínimo de conhecimento técnico a respeito das garantias fundamentais e regras processuais, pois somente se observados todos os mandamentos constitucionais e infraconstitucionais atinentes ao exercício do direito de defesa, estar-se-á a garantir integralmente a aplicação do princípio do devido processo legal em suas acepções formal e material.
Não é crível aceitar que o homem médio que, no pleno exercício de suas faculdades mentais, não possui formação na ciência do Direito, seja capaz de atuar em defesa própria, fazendo uso de todas as ferramentas – processuais e materiais – para o amplo e completo exercício do direito de defesa, pois simplesmente não dispõe da perícia e conteúdo técnico para tal, os quais, por sua vez, são inerentes à figura do advogado. Entendimento em sentido oposto permitiria a errônea conclusão de que a Constituição Federal, ao prescrever o devido processo legal como direito fundamental (art. 5º, LIV), estaria a se preocupar apenas com o aspecto processual formal, ou seja, desde que exercida a defesa, ainda que por pessoa inabilitada para tal, estar-se-ia atendida a regra constitucional. De antemão, nos posicionamos contrários a essa conclusão.
A hermenêutica constitucional, ao fixar o devido processo legal como cláusula pétrea (art. 60, §4º, inc. IV, CF), nos leva a concluir que o objetivo almejado é de prover ao acusado a defesa diligente de seus interesses, seja sob o aspecto formal, com a necessária observância às regras que norteiam o processo administrativo disciplinar e com a adoção de medidas – administrativas e/ou judiciais, se o caso – com vistas à sua preservação, mas sobretudo no aspecto material, mediante uma atuação estrategicamente coesa, combativa e contra argumentativa, o que sem dúvida demanda conhecimento do ordenamento jurídico como um todo. Não por outra razão, a própria Constituição Federal estabeleceu que o “O advogado é indispensável à administração da justiça...” (art. 133).
Não se olvide o argumento utilizados por aqueles que opinam pela legalidade da Súmula Vinculante n.º 05, no sentido de que seria até mesmo autorizada a dispensa de advogado em determinados processos judiciais, a exemplo do habeas corpus, revisão criminal e determinadas causas da Justiça do Trabalho e dos Juizados Especiais, denotando o brocardo “quem pode mais, pode menos”. Todavia, referido argumento não se sustenta, na medida em que nesses processos judiciais, a presença de defesa técnica, executada por intermédio de um advogado, é obrigatória nas hipóteses de não concessão da ordem de habeas corpus ou da interposição de Recursos Ordinário, na Justiça do Trabalho, ou Inominado, nos Juizados Especiais.
Assim, à margem das discussões corporativistas que envolveram a edição da Súmula Vinculante n.º 05, bem como do vício formal que exsurge de seu nascituro, vez que desconsiderou o requisito constitucional que exige a significativa repetição de decisões no mesmo sentido do verbete que se pretende sumular (art. 103-A), em linhas conclusivas, posicionamo-nos pela sua incorreção na medida que acaba por esvaziar a hermenêutica constitucional envolvendo o devido processo legal ao permitir que atos oriundos de processos administrativos sancionadores possam ser considerados legítimos, ainda que inobservados os ditames constitucionais fundamentais exercidos em seu mais alto grau, como a ampla defesa.
Mutatis mutandis, esse entendimento pode ser verificado no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, no contemporâneo posicionamento a respeito da inaplicabilidade da Súmula Vinculante n.º 05 em procedimentos administrativos disciplinares para apuração de falta grave em estabelecimentos prisionais, a exemplo da decisão proferida nos autos do Agravo Regimental na Reclamação n.º 8.830/SP, de relatoria da Ministra Rosa Weber (“Em qualquer hipótese, a jurisprudência desta Suprema Corte já́ assentou a inaplicabilidade do verbete da Súmula Vinculante 5 aos processos disciplinares administrativos para apuração de cometimento da falta grave”).
Para o tribunal que representa a última instância do Poder Judiciário brasileiro, o referido verbete sumular não seria aplicável aos procedimentos administrativos disciplinares para apuração de falta grave por réu apenado, pois, fundamentalmente, nessa ocasião estar-se-ia a decidir sobre a liberdade de ir e vir, garantia fundamental que se posiciona entre aquelas que ocupam o topo dos bens jurídicos tutelados pela Constituição Federal.
Não ousaremos discutir nesse breve ensaio sobre a valoração e/ou sobreposição de direitos fundamentais, na medida que o próprio Texto Constitucional não o faz explicitamente. Por amor ao argumento e parafraseando o advogado e filósofo do Direito, CARRIÓ[1] (1986, p. 99), entendemos que essa classificação somente seria útil se porventura nos deparássemos com um conflito entre direitos fundamentais, o que não é o caso.
Feita essa consideração, manifestamos desde já a nossa opinião a respeito da correção do entendimento expressado pelo STF, acerca da obrigatoriedade de defesa técnica em procedimentos administrativos disciplinares para apuração de falta grave por sujeito apenado, com a consequente inaplicabilidade da SV n.º 05 na ocasião. Contudo, com o máximo respeito, ousamos discordar dos fundamentos que levaram aquele Tribunal a construir o referido entendimento. Explica-se.
Conforme apresentado alhures, consideramos a SV n.º 05 contrária ao dogma constitucional que circunda o devido processo legal, ao admitir como legítimos os atos praticados no âmbito de processos administrativos sancionadores, ainda que não garantido o pleno exercício de direito de defesa por parte do acusado, aqui manifestado a partir da aposição de defesa técnica executada por um advogado, enquanto profissional habilitado e conhecedor da ordem jurídica.
Ao prescrever as regras atinentes ao devido processo legal e todas as demais garantias dele decorrentes, o Poder Constituinte não fez qualquer distinção a despeito de sua aplicabilidade apenas a determinados bens jurídicos. O fez, sim, de maneira geral e irrestrita, aplicável, portanto, a todos e quaisquer processos (ou procedimentos, àqueles que adotam essa terminologia), independente de sua natureza.
Uma interpretação panorâmica da SV n.º 05, em contraponto ao entendimento a respeito de sua não aplicabilidade nos procedimentos administrativos disciplinares para apuração de falta grave praticada por réu preso, nos permite afirmar que o Supremo Tribunal Federal estaria – ilegitimamente, segundo nossa opinião – a valorar bens jurídicos tutelados constitucionalmente e limitar o alcance dos artigos 5º, LIV, e 133, ambos da Constituição Federal.
Questiona-se: estaria, por exemplo, a violação do princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto resultado de um processo administrativo disciplinar eivado de nulidades, instaurado a partir de motivações pessoais e que resulta na perda do cargo pelo servidor público, colocando em risco a sua subsistência e de sua família, tão distante da violação princípio da liberdade de locomoção de um réu já preso, a ponto de merecer uma tutela diametralmente muito mais tímida? Segundo o nosso entendimento, a resposta é negativa. Ambas as situações devem receber a guarida do devido processo legal em seu mais alto grau, não havendo distinção entre elas.
Posto isso, a inaplicabilidade da Súmula Vinculante n.º 05 no bojo de procedimentos administrativos disciplinares para apuração de falta grave praticada por réu preso se apresenta correta por expressar – e garantir – a aplicação do princípio do devido processo legal segundo a prescrição constitucional e na sua exata medida. Contudo, ao avaliar o tema apenas sob o prisma da liberdade de locomoção (direito de ir e vir do réu apenado), estar-se-ia, indiretamente, a negar a plena aplicabilidade da tutela constitucional voltada ao regular desenvolvimento processual/procedimental, com o esvaziamento do conteúdo da norma.
Rafael Temporin Bueno
Especialista em Direito Tributário e especializando em Direito Administrativo
Sócio da área de Direito Público de ZMBS Advogados
[1] CARRIÓ, Genaro. Notas sobre el derecho y lenguaje. 3.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1986, p. 99.




Comentários