Concorrência em mercados digitais: estudo do Cade aponta dificuldades na regulação desse mercado
- ZMBS Advogados
- 20 de dez. de 2021
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I. Introdução
O Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do CADE divulgou um estudo que analisa e sintetiza as discussões latentes relativas à proteção e diminuição dos riscos da livre concorrência em mercados digitais, a partir da revisão de 21 (vinte e um) relatórios lançados por agências de antitruste ao redor do mundo (“Estudo”).
Com a crescente do mercado digital embasada, principalmente, pela transferência de dados, redução de custos, plataformas multilaterais, fácil acessibilidade e globalização, as agências regulatórias ao redor do mundo vêm enfrentando dificuldades e desafios em plano internacional para a análise de condutas e operações societárias e elaboração de critérios de notificação. A dificuldade se mostra ainda maior se considerarmos a relevância econômica e política desse mercado, que, em decorrência do seu funcionamento simultâneo em diversos países, deve se adequar à diversas legislações locais, respeitando a essencialidade de cada plataforma e sua forma de funcionamento.
Dessa forma, o estudo sintetiza, em seus principais pontos, as seguintes questões que serão relatadas nesse trabalho, de forma comparativa à legislação brasileira: (i) Considerações gerais sobre mercados digitais, sua relevância, estrutura, benefícios e poder; (ii) Problemas correntes e potenciais, e formas de analisá-los; e (iii) Possíveis soluções aos problemas levantados.
II. Considerações gerais sobre mercados digitais: Relevância, estrutura e benefícios
Inicialmente, o Estudo aponta e enfatiza que os mercados digitais detêm características e funcionamento distintos ao mercado “comum”, o que faz com que os problemas enfrentados sejam diferentes e as soluções e análise propostas sejam direcionadas e adaptadas.
A temática, que já foi abordada pelo CADE em outros projetos [1], foi relatada sob a ótica da convergência de algumas ideias trazidas pelos diversos relatórios, considerando que não há definição única ou unânime nesse sentido, e não de forma a reduzir ou exaurir um rol de características fixas observadas no mercado, mas de exaltar atributos essenciais e recorrentes que determinam sua estrutura e funcionamento.
Apesar de pouco consenso sobre o tema, entre os principais fatores está a particularidade de ser uma importante economia desempenhada por dados, com efeitos diretos e indiretos, como por meio de publicidades, denominados “efeitos de rede”, que explicam a forma acelerada de crescimento do mercado digital, em conjunto com os baixos custos de seu funcionamento. Ainda relacionado ao desempenho e uso de dados, vê-se que determinadas plataformas, com o acesso privilegiado e monopólio de informações, conseguem se manter no poder desse mercado por induzir o comportamento de consumidores e a concentração de serviços, dificultando o considerado “multi-homing”, que seria o uso simultâneo de plataformas distintas de busca patrocinada pelos anunciantes [2], dando ao usuário a possibilidade justa de visualizar e utilizar serviços online em diferentes plataformas. A limitação e monopólio desses serviços online por essas plataformas detentora de dados seria equivalente a práticas como “venda-casada”, barreiras técnicas e uso anticompetitivo de recursos no mercado “regular”, dificultando a competição e principalmente criando barreira para novas plataformas, mesmo que +
apresentem serviços de melhor qualidade.
Para visualização prática dessa característica, atualmente no Brasil com a implantação do open-banking, vê-se a fragmentação de serviços oferecidos pelos bancos, que passarão a ser ofertados por diversas plataformas bancárias à escolha do usuário, mediante a transferência simplificada dos dados entre os bancos, observada a legislação de proteção de dados em vigor. Dessa forma, evita-se a restrição do usuário ao uso de somente um provedor, e com isso seu acesso privilegiado a dados e oferecimento de serviços.
Assim, é levantada a visão, não unânime, de que os mercados digitais têm a tendência de concentração de serviços em determinadas áreas, em razão do acesso que cada mercado tem ao dado dos usuários e consumidores.
Outra característica levantada é a da forte presença do fator comportamental do consumidor, que deve ser analisada pelo viés econômico nesse tipo de mercado, considerando que a ausência de barreiras físicas facilitam a lesão a consumidores, levando a implementação de “opt-ins” automáticos que destacam informações e publicidades favoráveis ao fornecedor, enquanto exploram a irracionalidade de cada consumidor, o que é tratado pelas empresas como um pilar e diferencial competitivo, com estratégias de marketing pouco reguladas e que geram gratificação de curso prazo, levando o consumidor a criar um padrão de comportamento de consumo reiterado.
Em contraponto, exaltam-se como benefícios dos mercados digitais a diminuição de custos de transação, incentivo à inovação, maior acessibilidade à diferentes produtos e serviços, além da exploração da inteligência artificial e big data, possibilitando o aparecimento constante de novos mercados e colocando em ascensão o mercado da “propaganda”, da qual o consumidor final se beneficia pela facilidade do uso dos recursos para encontrar os produtos que tem interesse.
III. Problemas correntes e potenciais, e formas de analisá-los
O Estudo aponta que dentre os problemas correntes e potenciais da regulação e análise do antitruste nos mercados digitais, diversos deles são decorrentes dos próprios benefícios, ou seja, da mesma forma que a propaganda ou patrocínios facilitam o match das empresas com o perfil do usuário, o volume de dados fornecidos e a violação de privacidade desses consumidores acabam os lesando pelo aumento dos preços em razão de buscas que são rastreadas, imposição de termos injustos de acesso aos consumidores, que ficam dependentes de plataformas “meio” para a aquisição de produtos e serviços determinados entre empresas parceiras, e acabam excluindo outras empresas desse acesso e visibilidade.
Ainda no que tange à coleta agressiva de dados, o Estudo indica que diversos relatórios apontam indicativos de que grandes plataformas atuam de forma a desincentivar novos concorrentes de forma nociva e afrontosa ao desenvolvimento e incentivo à inovação por meio de desintermediação, ou seja, não utilizando-se de parceiros comerciais para intermediar transações, e criando ou adquirindo/financiando startups que concorram diretamente com seu objeto, como meio para fornecer plataformas completas para diminuir custos e proteger sua dominância. Além de personalizar o conteúdo para fidelizar os usuários, as denominadas “killer acquisitions”, que seriam “altamente danosas ao bem-estar do consumidor pois levam a um círculo vicioso: menores investimentos levam a menor inovação menor inovação restringe entrada e fortalece ainda mais as plataformas dominantes [3]. “
Diante disso, os instrumentos tradicionais de defesa da concorrência restam prejudicados, pois as metodologias de análise de volume e qualidade de preço e até satisfação e bem-estar do consumidor são atravessadas considerando que o número de consumidores de determinado produto não está ligado a uma preferência específica, mas sim a estratégias de marketing e uso de dados explorados pelas empresas. Ainda, o Estudo acentua diversas vezes o conceito do “preço nominal zero”, tido como um meio de se alcançar usuários em massa através de ofertas gratuitas de produtos e serviços[4], tornando a qualidade dos produtos de difícil mensuração, e demonstrando que os consumidores não recebem sinais claros quanto ao valor efetivo do consumo, uma vez que o preço pagos não refletem os reais valores da transação, faltando com transparência ao consumidor.
IV. Possíveis soluções aos problemas levantados.
Em que pese os mercados digitais terem sido apontados como mais passíveis de gerarem maior concentração de poder por uso e posse de dados, as agências reguladoras entendem que sua atuação nesse nicho se dá, principalmente, para estimular a concorrência e rivalidade de forma justa no ambiente digital, tendo em vista que em determinados mercados “on-line”, a concorrência é na verdade baixa.
Para isso, as medidas de antitruste devem se respaldar em conter ou impedir que as empresas atuantes ajam de forma a desencorajar ou impedir o crescimento de competidores por meio de condutas como as “killer acquisitions” e ainda criando barreiras para que plataformas já estabelecidas não acumulem os mercados de intermediação, sendo os únicos provedores de toda uma cadeia de serviços e produtos.
Com isso, a proteção ao mercado reflete na proteção ao consumidor e seu bem-estar e no incentivo à inovação sem que a intervenção das agências reguladoras acarrete ineficiência ao mercado, razão pela qual diversos relatórios propõem maior uso de medidas cautelares e mais técnicas nos mercados digitais, para que não sejam causados danos irreparáveis de concentração de poder e que então a atuação intervencionista ao mercado gere um desgaste e desincentivo ao empreendedor.
Na prática propõe-se um novo padrão de regras de antitruste, elencando-se medidas como avaliação de riscos em que o design de produtos impactam negativamente a competição, avaliação de descontos condicionados à exclusividade, presunção relativa de ilegalidade no caso de fusão e aquisição entre empresas dominantes, devendo a operação ser justificada, e a maior atenção à evidências qualitativas de concorrência desleal.
V. Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que a posse, armazenamento e gerenciamento de dados é um pilar importante para a promoção de poder nos mercados digitais, e que tanto as dificuldades quanto os benefícios desse nicho são pautados nos efeitos decorrentes do uso e exploração desses dados.
Assim, o mercado digital, em nítido crescimento e transformação, faz com que as autoridades concorrenciais busquem de forma cautelosa medidas a serem tomadas para intervenção nesse mercado, buscando o equilíbrio entre a preservação das desigualdades naturais do mercado e concorrência pautadas pela livre iniciativa e a regulação estatal por meio da criação de regulamentos, leis, medidas cautelares, supervisão e intervenção nessa dinâmica competitiva, de forma que essa regulação artificial, que busca proteger o consumidor, os princípios de lealdade e acesso ao mercado, não cause prejuízos à inovação e ao incentivo da criação de novas empresas e startups.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13709. Acesso em 19 Nov. 2021.
BRASIL, Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a repressão e prevenção às infrações contra a ordem econômica e altera legislações. Diário Oficial da União, Seção 1, Página 1.
MENDES, G.; MUNDIM, F.; SANSON, C. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2020/documento-de-trabalho-n05-2020-concorrencia-em-mercados-digitais-uma-revisao-dos-relatorios-especializados.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2021.
MINISTÉRIO DA ECONOMIA/BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução Conjunta nº 1, de 4 de maio de 2020. Dispõe sobre a implementação do Sistema Financeiro Aberto (Open Banking). [S. l.], 5 maio 2020.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Mercados de plataforma digital. Disponível em: <https://www.gov.br/cade/pt-br/pagina-inicial>. Acesso em: 26 nov. 2021.
[1] No segundo semestre de 2019, o CADE promoveu a conferência internacional "Designing Antitrust for the Digital Era" e lançou o relatório "BRICS in the Digital Economy: Competition Policy in Practice", durante a VI Conferência sobre Concorrência do BRICS. [2] PARECER Nº 25/2018/MBL/MPF/CADE PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº 08700.005694/2013-19 (Apartado de Acesso Restrito nº 08700.010980/2014-87) [3] MENDES, G.; MUNDIM, F.; SANSON, C: Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados. p 42 [4] Ibid. p. 40
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